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A MULHER DE GRANDE INSPIRAÇÃO E ADMIRAÇÃO, DE SONHOS E REALIZAÇÕES

Conheça um pouco mais sobre Lúcia Peixoto Cherem e a grandiosidade de sua carreira

Por Emanuelle de Freitas, Francisco Rosenente Neto e Milena dos Santos

Edição: Patrick Tales e Raíssa Trevisan

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Lúcia Cherem. Foto de Matias Dala Stella

QUANTAS LÍNGUAS VOCÊ FALA?

LC: Logo me interessei pelo francês por causa dessas minhas vizinhas (da infância). Depois estudei um pouco de inglês. Sei me virar no inglês, mas não falo tão bem quanto francês. E hoje estudo italiano por paixão. Adoro! Gosto da sonoridade e estudo com uma professora ótima. Leio muito em italiano e o bom de ler muito na língua, é que você não precisa falar bem para conseguir ler, você lendo, vai aprendendo e melhorando na fala. 

POR QUE TANTO INTERESSE EM LÍNGUAS ESTRANGEIRAS, EM OUTRAS CULTURAS? 

Lúcia Cherem: Me interessei porque era muito tímida. Quando precisava falar em público (na adolescência), pensava: “Meu Deus”. Entrava em pânico no começo, gaguejava, tinha problemas de autoestima, de identidade. E aí a língua estrangeira funciona como um teatro, né? Como se você tivesse uma outra personalidade, então em francês era muito menos tímida do que em português. E assim fui me estruturando na língua estrangeira. Hoje eu falo em público, sem problemas em português.

COMO FOI A SUA EXPERIÊNCIA DE APRENDIZAGEM?

LC: Como se fosse um treino, um processo de maturação. (Ajuda muito) quando você tem problema de identidade com a sua própria língua ou  tenha alguma vergonha de falar em público. Na universidade, ficava nervosa se precisava. Então fui para a língua estrangeira, gosto de falar, é um jeito de esquecer um pouco as angústias, né?

COMO VOCÊ DECIDIU SEGUIR PELA CARREIRA QUE SEGUIU?

LC: Não me imaginava muito como professora de português. Comecei a estudar francês muito menina aos treze anos, tinha uma vizinha que estudava e me encantei, em casa disse a minha mãe “Eu também quero estudar francês”, não sei por que eu tive essa vontade. Fui pra Aliança Francesa e aprendi francês e daí na faculdade quis continuar estudando. Antes eu cursei um ano de Jornalismo, mas não me achei: primeiro que a gente não tinha quase aula, era um curso muito desorganizado no final dos anos setenta. Me sentia muito insegura (com o aprendizado). Resolvi fazer o vestibular de Letras e precisei me decidir, porque não é permitido fazer dois cursos na Universidade Federal. Fiquei muito fascinada por Letras e senti uma diferença, acabei abandonando o Jornalismo, achei o que estava procurando, mais solidez e conteúdo.

 

Em Letras tinha muita coisa pra ler, me apaixonei pela linguística e pela literatura. Na Aliança Francesa, passei a ser professora enquanto era estudante na universidade e ao acabar o curso consegui uma bolsa do governo francês. Fui para França fazer uma especialização, era um curso de formação de professores de francês, resolvi ao mesmo tempo fazer uma Maîtrise.

 

Acabei passando quatro anos em Paris: fiz a especialização e Maîtrise em literatura infanto-juvenil comparada e fiz uma comparação entre os contos brasileiros na época da ditadura, porque na época da ditadura havia muita repressão (com o que poderia ser escrito). Entretanto, eles esqueceram da literatura infantil - havia uma porção de contos que falam de poder e as pessoas não prestavam atenção. Traduzi para o francês os textos, era uma reatualização de contos tradicionais europeus no momento crítico da ditadura brasileira.

 

Consegui terminar a Maîtrise e comecei o doutorado, mas era muito difícil lá, porque era preciso trabalhar e estudar. Eu não consegui e acabei voltando pro Brasil em 87. Fui trabalhar numa editora francesa que se instalou em Curitiba e logo em seguida tive meu primeiro filho, era bem difícil trabalhar nessa editora, porque eu precisava viajar muito pela América Latina. Depois, apareceu a oportunidade de um concurso na Universidade, foram mais de 30 anos. Entrei na Universidade em 92 e saí em 2019, foram muitos anos de trabalho como professora (risos).

VOCÊ DISSE QUE FOI MEIO DIFÍCIL MORAR EM PARIS, COMO FOI MORAR NUM LUGAR LONGE DE CASA? 

Lúcia Cherem: Não é muito fácil, ainda bem que tinha uma amiga lá, que era bolsista já fazia um ano, ela me recebeu. No começo fiquei morando um pouco com ela e depois consegui um quarto numa residência universitária.

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COMO FOI LIDAR COM A SAUDADE?

LC: Não existia internet, ficava esperando o carteiro, quando ele vinha eu dizia “Meu Deus será que ele tem algum envelope verde amarelinho?” (risos), porque eu já via na mão dele se tinha carta pra mim. Então as cartas era uma loucura, eu ficava um tempão sem falar com a minha família, era caro os telefonais, era bem angustiante, no começo e depois, foi como eu realmente me senti latino-americana, porque tinha colegas na universidade, argentinas, uruguaias, paraguaios, colombianos e a gente era muito unido, foi quando eu senti o quanto o Brasil é ligado aos seus vizinhos, senti isso na Europa. Nunca tinha estudado espanhol, mas a gente se compreende, então tinha toda uma ligação e isso foi muito forte. Ficamos muitos mais ligados ao país quando a gente tá fora, procuramos outros brasileiros e latino-americanos.

Lúcia Cherem e sua neta. Fonte: acervo pessoal

COMO VOCÊ FOI RECEBIDA NO PAÍS ESTRANGEIRO?

LC: Não tinha muitos amigos franceses,é uma coisa meio separada assim, eles veem a gente como colonizado, né?. Por exemplo, eu trabalhava de babá, me lembro que a mulher dizia pra mim, “Você fica lá no quarto das crianças”, daí (a mãe) chamava a menina e a garota levava para mim um pãozinho com um golinho de vinho, “A mamãe mandou pra você”, então eu senti toda essa, essa questão da discriminação, de ser de outro continente, considerado mais pobre. Eles tinham medo, as meninas me abraçavam bastante, a gente tem esse jeito brasileiro de querer ser próximo, quando eu chegava a menor pulava no meu pescoço e aí a mais velha dizia “A mamãe já disse pra você não beijar ela” (risos). Então era muito chocante, mas na verdade, essas coisas também acontecem no Brasil, por aqui tem muito preconceito contra os negros, contra os índios, contra..., e eu sentia isso, entende?

QUANDO VOCÊ COMEÇOU A GOSTAR DOS CONTOS DA CLARICE?

LC: Olha, foi bem cedo. Me lembro que tinha uns 14 ou 15 anos quando descobri os contos, me assustei com aquela literatura que parecia que estava falando sobre mim. É incrível porque a Clarice é considerada uma escritora difícil, por muita gente, mas os adolescentes têm uma facilidade incrível de entrar no texto dela. É uma conexão que se faz meio intuitivamente. É uma coisa impressionante.

 

Sempre li muito a Clarice Lispector, foram contos que me marcaram muito. E a literatura dela sempre ajudou muito também, a enfrentar a minha própria solidão, a incompreensão de problemas da minha família e assim me refugiava na literatura dela para poder entender o meu processo de maturação. Acho que a adolescência é sempre uma fase bastante complexa, a gente está passando de uma fase para outra, é muito instável, e ela toca muito (nos sentimentos), ela tem outros contos que falam de personagens adolescentes. Então ela aborda assuntos de instabilidade, por isso acho que muitos adultos não gostam de ler Clarice. Sentem um pouco de medo porque ela toca em coisas que nos desestabilizam. Mas ela me ajudou muito, sempre me identifiquei com as obras. Então resolvi fazer o meu doutorado sobre a recepção da Clarice na França.

E POR QUE A ESCOLHA DE SUAS OBRAS PARA TER COMO TESE EM SEU DOUTORADO?

LC: Sempre tive essa ligação muito forte com a literatura dela. E eu queria escrever sobre alguma coisa que fosse importante pra mim. Não queria fazer só uma coisa teórica, uma tese. Não, eu queria falar sobre uma coisa que fosse vital para mim. Também tinha medo de ficar pelo caminho, pois uma tese de doutorado é um desafio, ao pegar um tema que realmente me interesse, me fez não ficar na metade e ir até o fim. Consegui fazer com muita paixão, me realizei. Uma literatura que realmente me tocou muito e que me acompanha.

O QUE TE ATRAIU NA LITERATURA DE CLARICE LISPECTOR?

Lúcia Cherem: Eu lia muito Clarice. Como uma espécie de auto ajuda, de ajuda psicológica mesmo. Tem pessoas que fogem da Clarice como o diabo da cruz, acham que ela é difícil. Para outros, ela alimenta, porque o que faz é mostrar a sua própria fragilidade quando escreve. Ela disse uma vez: “Eu não vou conseguir, escrever é muito difícil, a escrita é o resultado de um fracasso”, tudo o que a gente sente, entende? O fracasso diante da página, de não conseguir escrever direito, ela fala sobre essas coisas.

 

Ela expõe o próprio processo de escrita, não esconde nada. E isso é fascinante, alguém que colocasse de maneira tão nua seu processo de escrita. Ela faz isso sem medo, ela é muito corajosa como escritora, porque não é fácil, não é uma escrita para passar o tempo, não é uma escrita para divertir. É uma escrita que bota o dedo na ferida, é uma escrita que faz você pensar, sobre a sua vida, sobre o seu sofrimento, sobre como é passar por eles, como enfrentar esses momentos difíceis.

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Capa do livro de Lúcia Cherem. Fonte: Amazon

COMO VOCÊ SE SENTE AO SABER QUE AJUDOU A CRIAR A ASSOCIAÇÃO DE LEITURA DA LER.COM E INCENTIVOU O PROJETO QUE NÓS TEMOS HOJE NO JOÃO GUENO? 

LC: O projeto no João Gueno só acontece porque a gente tem parcerias, porque as pessoas também querem trabalhar. Fomos  até a escola e tivemos uma abertura total, tanto da Érica (Professora de Português) quanto da direção, que permitiu o trabalho de diálogo, é esse diálogo que faz as coisas avançarem. E a Ler.com era um sonho antigo, porque durante a minha carreira nos anos 90, participei muito de encontros sobre leitura.

COMO O SALÃO DO LIVRO ENTROU NA SUA VIDA? 

LC: Em 2019, fui convidada para uma mesa redonda pela  Secretaria do Estado da Cultura e mais o Instituto Dom Miguel, eles fizeram um grande encontro sobre questões de leitura (na atualidade). Estava junto com uma professora de Minas Gerais, a Rosana Montalverne e o professor José Castilho, que tem uma ONG também, sobre leitura. Eu tinha convidado uma pessoa da Associação Francesa de Leitura, eles (a organização) queriam um nome internacional, e convidei a Cristine Razet. Ela veio fazer a abertura, só que disse pra mim: “Quero ver o que tá acontecendo, você fica traduzindo pra mim o encontro pra eu saber como é esta a questão da leitura”, e a Cristine me alertou para uma questão interessante.

 

Como a nossa cultura é oral, ela viu muitas oficinas, por exemplo, em que a pessoa chegava com um livro, e ao invés de ler o livro pros alunos, de ler e depois discutir, ela fazia teatro em cima do livro, cantava uma música, entende? E a Cristine: “Mas cadê o texto? Quando é que as crianças, que os alunos vão ler o texto?”, eles vão ficar só tendo  uma visão terceirizada? Passando por alguém, e não tendo um texto nas mãos. Ela me avisou: “Olha, na França a gente faz um salão do livro, que tem uma relação com as escolas”, e foi isso que me chamou atenção.

 

Tentei montar com ela, o Instituto Dom Miguel e a Fundação Cultural de Curitiba, um salão que levasse em conta essa relação do livro com a escola, com o autor, e no final, o salão. Mas com o objetivo já organizado, ou seja, você não vai chegar lá, levar as crianças só pra ler os livros, eles já vão ter lido, discutido, conhecido os autores. E isso forma uma rede muito mais sólida. Não é apenas o livro como um objeto bonito que vai ser comprado, é algo mais trabalhoso, requer conexão entre a escola, com as crianças, com os autores, e o salão vai ser uma espécie de finalização do processo, e não o início do processo. Então, dá muito trabalho porque você tem que integrar vários setores.

 

As doações de livros vieram de editoras, autores, professores, alunos e o salão em si que vai ser organizado no memorial da cidade. Nosso objetivo era envolver as escolas das periferias, sabemos que na região metropolitana há muito mais carência de biblioteca, as que existem nas escolas são menos renovadas. Aconteceram vários cortes na compra de livros no MEC, então sabemos dessa dificuldade. Por isso queremos uma ligação com as escolas da região metropolitana, principalmente. As escolas do centro podem vir para o salão, mas o trabalho de conexão e de receber autores vai ser na região metropolitana.

 

Essa é a nossa preocupação, porque sabemos que é mais difícil dos alunos se deslocarem, virem até às livrarias (do centro), então (com o Salão do Livro) vai haver uma relação mais próxima com o livro. É uma questão de oportunidade, se você coloca esses livros na mão dos adolescentes, eles vão ler. Não tem esse negócio de ficar falando mal da escola pública, que o nível é ruim: é só abrir as portas, dar os livros pras pessoas. Não existe família, trabalhador que não queira que o seu filho se eduque. Se tiver os canais, você vai usar, é uma questão de dar oportunidades e permitir que as pessoas tenham acesso. É muito mais simples. Percebemos com os alunos do João Gueno. Desde que exista o empenho de fazer essa transformação interna na escola, de dar os canais, de abrir os acessos para que os alunos dominem esse poder que tá na linguagem. Aprendendo e retrabalhando, se tornando os autores, escritores e pensadores da sua própria realidade.

COMO VOCÊ PRETENDE CONTINUAR SEUS PROJETOS APÓS A PANDEMIA? 

Lúcia: Não sei, tudo vai depender (da conversa), pois temos que nos reunir com o pessoal lá da ler.com, porque cada um tem uma coordenação, eu por exemplo trabalho na seção leitura e letramento, então são vários projetos que as pessoas podem ir lançando. Mas no momento estamos sem perspectiva, porque enquanto não podemos nos reunir poderíamos começar o projeto de cursos (on-line), porém ainda não temos tempo de transformar em cursos a distância. Porém eu espero que ela continue, pois nós criamos ela para as novas gerações, não para mim, que já estou com 60 anos. Ele tem o objetivo de resolver um problema de conexão, que está sendo muito difícil, pois tudo está muito individualizado, muito no seu facebook, no seu Instagram, no seu WhatsApp, parece que falta uma ligação! Isso é uma mudança complexa na humanidade.

Lúcia: Não sei mais como a coisa está ocorrendo, pois eu estou aposentada. Não tenho que dar aulas à distância. As minhas colegas estão lá, preparando aula, montando vídeo, desesperadas porque têm que dar as disciplinas e tal. Acho que neste período a gente devia aproveitar para fazer outras coisas dentro de casa, com os pais, fazer um tipo de escola como os indígenas fazem, vão pescar junto com os filhos, vão cozinhar junto com os filhos, fazer cerâmica junto com os filhos, seria uma oportunidade de você ter um aprendizado de vida, costurar, cozinhar, sabe? Fazer mais coisas práticas e poder passar saberes que são tradicionais, que são da família, histórias familiares. Acho que a gente tinha que tentar um outro tipo de educação neste período, porque a educação formal neste período está muito prejudicada. Então deveríamos ter uma relação mais próxima com as crianças e com os adolescentes, assim fazer coisas juntos, ensinar, fazer os ensinamentos da casa. Não insistir tanto na educação formal, mas sei que tem o problema do ENEM, tem o vestibular. Eu estou falando isso mais para os pequenos, mas para os maiores. Não sei...

QUE IMPACTOS A EDUCAÇÃO PODE TER COM ESTE PERÍODO DE ISOLAMENTO SOCIAL?

No brilho dos olhos ela mostra o amor pela literatura e pelas línguas. Se formou em Letras (português|francês) na UFPR -Universidade Federal do Paraná em 1982 e fez doutorado em língua e literatura francesa na USP - Universidade de São Paulo em 2003. Nessa edição, convidamos a professora, escritora e tradutora Lúcia Peixoto Cherem para falar sobre sua carreira e ver como ter estudado, trabalhado e se dedicado com algo que ela ama foi a fórmula para seu êxito.

Lúcia Cherem lançou em 2014 a obra As duas Clarices - entre a Europa e a América: Leitura e tradução da obra de Clarice Lispector na França e Quebec, pela editora UFPR. Atualmente, trabalha na pós-graduação de Letras como professora colaboradora e na Ler.com, Associação de Escrita e Leitura do Paraná. Ela conta para a revista Janelas Abertas sobre seu projeto, adiado por causa da pandemia, Salão do Livro.

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