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UM HOMEM DE HISTÓRIAS

Professor de jornalismo, cronista e colunista, Zeca dá detalhes de sua carreira e conta um pouco sobre o modelo atual de ensino e a relação das pessoas com a cidade

Por Ana Luiza, Emanuelle Viana, Luana Napoleão, Melissa Andréa Milena Yasmin.

Edição: Lívia Betim Ferreira, Maria Clara Lopes Moleta e Thiago Fedacz Anastacio.

Foto do professor José Carlos Fernandes. Foto: Mariana Pallú

José Carlos Fernandes, mais conhecido como Zeca, é professor na Universidade Federal do Paraná (UFPR), jornalista e cronista curitibano. O Zeca também é muito carismático, o que certamente contribuiu na sua carreira na comunicação. Em entrevista, nos revelou muitas histórias em meio a sua carreira no jornalismo e na comunicação, desde entrevistas mais sérias até histórias cômicas sobre entrevistados e alunos. Apesar de sua vocação e carreira serem muito interessantes, ainda há muitas outras a se contar: histórias sobre sua infância, seus sonhos e também ambições. Foi em sua casa que o jornalista nos recebeu. A estante de livros que parecia não ter fim foi o cenário de uma conversa que durou mais de uma hora. Apesar da distância que marca o momento em que estamos vivendo, Zeca tem a habilidade de aproximar aqueles que até pouco tempo não o conheciam muito bem. Um otimismo que não é bem otimismo é mostrado nesta entrevista, na qual, além de sua vida profissional, os detalhes de sua história e um pedacinho de sua essência são evidenciados.

HOUVE ALGUM MOMENTO MARCANTE QUE INCENTIVOU VOCÊ A FAZER JORNALISMO?

ZECA: Eu tive uma vida religiosa. Na verdade, vida religiosa é um termo técnico, eu fiz parte de uma congregação religiosa. Lá, a gente fazia um jornal mural. Cada turma tinha que fazer o seu. Eu gostava muito. Tinha um colega, que é meu amigo até hoje, que me ajudava a fazer esse jornal. Acho que foi ali que pela primeira vez alguém me disse: ‘Você deveria fazer jornalismo’, e aquilo ficou na minha cabeça. Quando saí do seminário, vi [o jornalismo] como se fosse uma extensão daquilo que eu queria fazer antes: um trabalho que ligava direitos humanos e tudo o mais. Acabou vindo não como uma primeira opção, mas através da escrita, da experiência de produzir um jornal e pela convivência com esse mundo. Antes disso, teve outra coisa. Lá na década de 1950 e final dos anos 1960, o meu pai trabalhou muitos anos no jornal, não como jornalista, mas como um faz-tudo. Ele era motorista, entregador, tudo o que você puder imaginar. Por causa disso, lá em casa a gente viveu cercado por pilhas e mais pilhas de jornais que ele levava lá para vender posteriormente. Depois ele abriu uma banca de jornais e de revistas que teve por mais de 30 anos, e que ficou famosa no Água Verde. Era a segunda banca que mais vendia jornal em Curitiba. Domingo de manhã, ele levantava todo mundo em casa para montar o jornal. A edição de domingo era tão pesada que se jogasse na cabeça de alguém poderia matar (risos). Foi ele quem me ensinou a primeira lição do jornalismo: dar às pessoas o que elas precisam saber.

HOUVE ALGUMA SITUAÇÃO QUE FEZ VOCÊ QUERER DESISTIR DO QUE FAZ?

ZECA: Acho que sempre tem, não é? Uma das coisas, por incrível que pareça, era a timidez. Na época em que me formei havia muita agressividade, de ir atrás do furo de reportagem. Dos meus 30 e tantos anos de jornalismo, uns 15 sentei ao lado do Mauri König. Ele é um dos maiores jornalistas da história do Brasil. É um cara que tem uma agressividade, não como pessoa – ele é muito dócil –, mas durante o fazer de uma reportagem, porque ele ia muito em cima. Eu olhava e ficava pensando: ‘Gente, eu não tenho isso’. Eu era mais dispersivo e gostava de temas que não davam manchetes para o jornal. Por causa disso, me sentia menos jornalista. Inclusive, demorei para encontrar o meu lugar, tanto é que fui para o caderno de cultura, um lugar que não tem essa agressividade toda. Na cultura você trabalha com notícias propriamente ditas, sobre músicas e livros, por exemplo. Fiquei 13 anos lá, depois fui para uma área mais agressiva quando já estava mais velho e apaziguado. Tenho uma grande amiga, que viu que eu era tímido, que me dizia que a gente aprende muita coisa olhando. Às vezes, olhando você capta mais coisa do que aquele que encheu [o entrevistado] de perguntas. Isso me consolou.

EM ALGUM MOMENTO PENSOU EM ALGUMA PROFISSÃO QUE NÃO FOSSE JORNALISTA, CRONISTA E COLUNISTA?

ZECA: Sim. Acho que todo jornalista na verdade é alguém que queria viver muitas vidas. Ele tem um distúrbio e o jornalismo é uma forma de você viver essas várias vidas. Eu tenho duas formações antes do jornalismo, a faculdade de filosofia e a de belas artes. Eu queria fazer história e Letras também. Tentei a música, porque era uma coisa que eu gostava, mas a música não gostava de mim (risos). Às vezes a gente gosta de uma coisa e aquela coisa não gosta da gente. Mas eu pensava muito em Letras, tanto é que o mestrado e o doutorado fiz em Letras, que é uma área da literatura que eu adorava. Uma vez fui fazer uma reportagem, já velho de profissão e tal, sobre médicos de família. A gente passou uma semana convivendo com os médicos de família em Curitiba, esses médicos que vão de casa em casa. E eu entrei em crise: ‘Meu Deus, por que eu não não estudei para ser médico?’. Eu sempre dizia que não queria ser médico. Acho que se aparecesse uma pessoa fraturada na minha frente eu ficaria paralisado. Fico sem ação em situações de muita tensão. Mas quando eu vi o médico de família, entrei em crise, e pensei que gostaria de fazer aquilo. Por incrível que pareça, a primeira profissão que eu sonhei era a de geógrafo. Eu colecionava mapas. Acho que tudo isso tem a ver com o jornalismo também, com a profissão, que é uma muito rica, que te coloca em contato com muitas vidas e com muitas profissões diferentes. O Rubem Alves dizia que todo mundo deveria ter duas atividades na vida: uma intelectual e uma manual. Ele dizia que assim você não perde a noção da realidade e nem das coisas simples. Eu concordo com ele, acho que na verdade a gente nasceu pra viver muitas vidas. A vida se realiza muito no chão, onde você pisa e a gente nunca pode perder esse chão. A atividade manual te ajuda a se manter [firme]. É engraçado isso, a vida da gente é muito mais dinâmica do que nós podemos imaginar.

VOCÊ JÁ SE IDENTIFICOU COM ALGUÉM QUE ENTREVISTOU?

ZECA: Já, bastante!  É como se a tua sala de visitas fosse aumentando cada vez mais, porque a arte da entrevista tem muito disso, você entrega para o outro algo de muito positivo. Têm personagens que você entrevistou que ficam marcados para sempre na vida. A lista é infinita. Era muito difícil uma semana que eu não tinha uma experiência marcante, principalmente no trabalho das crônicas, que eram entrevistas. Posso citar uma, por exemplo, a Sabine Wahrhaftig, uma senhora, dona de loja judia, sobrevivente do holocausto. Ela não queria dar entrevista, achei que não ia rolar nada, mas quando a gente se encontrou aconteceu uma coincidência. Sabe quando você chega na casa da pessoa e ela vai correndo buscar o café? É que ela quer que você vá embora logo (risos), mas quando ela voltou com o café eu olhei na bandejinha e tinha uma toalha bordada, e aquela toalha foi bordada pela minha avó. As mulheres da minha família viveram de bordar enxovais para a sociedade de Curitiba. Quando ela veio eu olhei para ela e falei: “Nossa, esse bordado é da minha vó!” e ela respondeu: “Mas quem é a tua vó?” Falei: “A dona Marta, do Portão”. Aquela coincidência ligou um botão, era como se ela tivesse que contar a história que ela tinha jurado para ela mesma que nunca mais ia contar: o que ela sofreu na perseguição aos judeus na Alemanha. Ela sentou e desatou a contar tudo que ela passou. Eu tô contando um [caso], mas é muito comum de acontecer, em um trabalho em que você dedica tempo com as pessoas, de você descobrir que não existe vida anônima, sabe? Quase todo mundo viveu uma história.

EM UMA ENTREVISTA ÀS CEGAS COM A ANDREA GRECA E TAMBÉM NA ENTREVISTA QUE VOCÊ DEU PRA UFPR TV, VOCÊ SE MOSTROU UMA PESSOA BASTANTE OTIMISTA. VOCÊ SE CONSIDERA UMA PESSOA OTIMISTA? POR QUÊ?

ZECA: Não sei se é bem a palavra otimista. Acho que refletir sobre o mundo traz um certo grau de otimismo. Vou fazer uma confidência para vocês, hoje a gente chama de depressão, mas eu tive uma melancolia juvenil, diagnosticada muito cedo. Eu era uma criança muito melancólica, e um adolescente que lutou contra a melancolia. Uma das primeiras coisas que decidi na minha vida foi: “Não vou ter filhos”, porque não gostaria que nenhuma outra pessoa tivesse que lutar com a melancolia. Uma vez, quando eu já era adulto ou jovem li um texto do John Updike, um escritor muito popular nos Estados Unidos, que dizia que a vida tende a dar certo. Ele dizia que nesse momento, as pessoas estão se levantando da cama, saindo pra rua, pra fazer a vida, para construí-la. O que deu errado não é regra, é exceção. Então, o otimismo, ele nasce de uma racionalidade. Não é um otimismo do tipo, “Ah, Deus vai cuidar, Deus no comando”, é a ideia de que milhares de pessoas estão saindo de casa para fazer a vida dar certo. É partir de um ponto de vista inteligente, de acreditar que a vida está se realizando. A gente tende a construir a vida e não a destruí-la. Essa é a potencialidade do ser humano, a de construir. Pode ser chamado de otimismo, mas eu acho que talvez seja uma postura. Por que que ela é uma postura? Porque ela te leva a fazer perguntas para a realidade.

O QUE VOCÊ VÊ DE MELHOR NA CIDADE? O QUE HÁ DE MELHOR QUE AS PESSOAS PRECISAM CONHECER?

ZECA: Por profissão, o jornalista é o sujeito da cidade. Começa por aí. Nos anos de profissão você está quase sempre na rua, circulando pelo espaço urbano. Tem um autor chamado Giulio Carlo Argan que diz que a mais bela invenção do homem é a cidade. Até o fato de você ficar em casa é uma forma de viver a cidade. Ela permite, né, que você encontre um estrangeiro, que encontre pessoas que você jamais encontraria. A cidade permite isso, você ter contato com mundos diferentes, com possibilidades de saberes diferentes. A cidade é um enigma. Quando você vê uma casa antiga, com pinturas, e você diz: “Quem que morou aqui?”. Aí a tua imaginação literária é provocada. A experiência da rua atiça a nossa imaginação, ela é como andar em um livro. E então você começa a fazer perguntas pra cidade. E a partir do momento que você vai acumulando histórias sobre a cidade, você faz cruzamentos. Andar por uma rua não é mais ir a um lugar, você vai a uma memória, porque você passa e lembra daquilo que você escutou, que você viu, que você leu sobre aquele lugar. E é muito estimulante imaginar que tem um lugar que não é só o que a gente tá vendo. É um lugar onde estão aqueles que já se foram também, de alguma maneira. Não vai pensar que eu estou vendo fantasma (risos), não cheguei nessa fase ainda.

O QUE MUDOU NA INTERAÇÃO DO PÚBLICO COM A CIDADE? POR QUE AS PESSOAS, HOJE EM DIA, TÊM MEDO DE CONHECER OS LUGARES, PROCURAR SOBRE AS COISAS, DENTRO DA PRÓPRIA CIDADE?

ZECA: Dizem que a cidade está fraturada, que ela perdeu a sua concepção original, onde todo mundo poderia encontrar a sua chance. A ideia da cidade moderna era a de uma cidade onde tanto o filho do nobre, quanto o filho do imigrante poderiam ter acesso às mesmas coisas, e ela se fraturou, se quebrou, se tornou um lugar cheio de ilhas, dividida em pedacinhos, e isso favoreceu a propagação da violência. Mas só tem uma coisa que é possível de se fazer: é preciso lutar pela cidade, ela é um direito nosso. A gente precisa procurar saídas para a violência, às vezes é um poste de luz, uma organização comunitária, é uma rede de ação social das prefeituras, fechar a rua, parar o trânsito. O espaço urbano é conhecimento, é um absurdo que o jovem não consiga chegar a um espaço de lazer ou um espaço de conhecimento, como a biblioteca pública. Agora é o momento de muita luta pela cidade, porque quanto mais as pessoas se esconderem e abandonarem os espaços, mais violentas vão se tornar as cidades. Temos o direito de usá-la, esses espaços foram construídos para nós.

COMO VOCÊ CONSEGUE ENCONTRAR PAUTAS EM LUGARES QUE MUITAS VEZES NÃO SÃO VISTOS COM ATENÇÃO? COMO FAZER ISSO?

ZECA: É prática, vem com o tempo. Uma das coisas que acho que me ajudou, foi a minha história de vida e o fato de eu ter uma família de comerciantes. A gente estava convivendo o tempo inteiro com pessoas, que despertavam a nossa criatividade. Depois, no seminário, entrei em muitas casas e as pessoas contavam as suas vivências. Então isso vai de você perceber que toda pessoa guarda uma história. No jornalismo tem muito disso, você tem contato com muitas pessoas. Na redação, por exemplo, quando ninguém levava a sério [uma pauta], eles falavam: “Ah, fica para o Zeca, porque ele gosta dessas personagens estranhas”. Então, você precisa acreditar, contar histórias que a maioria não enxerga. Mas eu acho que o principal é o fato de evitar o que é óbvio, é muito de prestar atenção nos coadjuvantes, nas pessoas que não estão muito evidentes e dar a chance para as histórias que chegam pra você. Esse é um trabalho do jornalista, ele é o intermediário dessas vidas que estão acontecendo.

 O QUE É EDUCOMUNICAÇÃO? POR QUE ELA É IMPORTANTE?

ZECA: É uma pedagogia, uma teoria que abarca essas duas áreas: a comunicação e a educação. Daí gerou essa palavra que é um neologismo. A educomunicação é um instrumento também, tanto para a escola quanto para os meios de comunicação. Quando você dá os meios para os adolescentes, jovens, crianças e adultos, para eles produzirem educomunicação, eles têm um processo de assimilação do conhecimento e da realidade que é mais profundo. Por exemplo, quando você dá uma câmera para uma criança de uma comunidade para filmar a sua realidade, vai ser completamente diferente do que uma pessoa de fora filmaria. Sem dizer que ela começa a enxergar a própria realidade. Veja, a educomunicação tem esse poder de abrir uma porta, antes não aberta. O teu olhar não abre todas as portas, você precisa de outros olhares, de outros discursos.

VOCÊ ACHA QUE O MODO DE ENSINO ATUAL ESTÁ ULTRAPASSADO?

ZECA: Não. Às vezes, a gente se apressa em dizer que a educação é inovação, que a educação é tecnologia... Aí você vê que as consideradas melhores escolas do mundo como as de Cuba, Polônia, Finlândia, não são altamente tecnológicas. Elas trabalham com avaliações criativas, você tem que quebrar a caixinha do professor. Acho que a escola brasileira tem experiências riquíssimas. Somos um país com desafios imensos e o professor brasileiro é muito criativo. Mas a gente tem um discurso muito derrotista da educação aqui, adoramos história de derrota. A escola é o espaço mais democrático, pelo menos ela poderia ser, principalmente a escola pública. A federal é super democrática hoje e isso é uma revolução. Têm pessoas que talvez nunca se encontrassem na vida se não fosse uma política de “não, tem que ter lugar pra todo mundo, todo mundo que a gente puder tem que estar aqui representado”, e isso acabou por mudar muita coisa. 

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